Animais Fantásticos e Onde Habitam – Crítica


Eu juro solenemente não fazer nada de bom.

Ao começar a redigir este texto, me encontrei – inicialmente – em um bloqueio criativo. Não tinha ideia alguma de como iniciá-lo, foi aí então que pensei:  “Por que não começar com as frases utilizadas para acessar ao Mapa do Maroto? ”. Não há maneira melhor de se começar um texto, vídeo, ou qualquer tipo conteúdo envolvendo o universo mágico de Harry Potter do que recitando tal frase. Se engana quem não atribui essa sacada genial ser um dos motivos de seu sucesso do canal do YouTube do Observatório Potter – canal excelente, por sinal.

Se você – fã de longa de longa data ou que tenha até mesmo descoberto tal universo recentemente – já se sente ao menos um pouco realizado ao ler essas simples palavras citadas na primeira linha do texto, Animais Fantásticos e Onde Habitam terá um gostinho diferente. Caso você tenha nascido entre os anos 90 e os anos 2000, é bem provável que se inclua nessa lista.

Lembro-me perfeitamente do dia em que fui presenteado com os livros de Harry Potter, por uma amiga da família. Recordo-me de começar a ler os livros pelo último, pois quando os ganhei, já havia lançado os filmes dos primeiros seis, e estava no mais ansioso aguardo pela primeira parte do que seria o fim da saga nos cinemas. Lembro-me de não conseguir dormir, de ansiedade, no dia anterior ao lançamento de Relíquias da Morte Parte II. Eis que o aguardado dia chega, e eu, um adolescente esperançoso e deslumbrado com o universo mágico, saio do cinema extremamente triste – não pelo o que acabara de ver, mas sim por saber que aquele seria o fim de uma das mais influentes franquias que passara por minha breve vida. Mas eu sabia que aquele final era o mais perfeito possível, e uma continuação seria absolutamente desnecessária. Harry Potter havia crescido comigo e com vários de meus melhores amigos. Eu presenciei o amadurecimento da saga, que iniciara com um tom absolutamente pueril, ingênuo, e acabara com aquele tom melancólico, sorumbático.

Eis que, em 2016, já um jovem adulto, que corre atrás de suas próprias coisas e tem uma visão muito menos colorida e mais, de certa forma, lúgubre do mundo, fui presenteado pela incrível J.K. Rowling com meu amado universo de volta às telonas. Não há como mensurar a importância de Animais Fantásticos e Onde Habitam para mim, pois se trata de uma franquia que moldou parte de minha personalidade, além de possibilitar horas de assuntos com meus amigos, o que é algo precioso para uma criança/adolescente tão tímida como eu era. A importância é tal como a de vários que nasceram nos anos 70/80 e cresceram indo ao cinema assistir aos fantásticos filmes da saga Star Wars – saga muito importante, também, em minha vida, mas não tive a oportunidade de pegá-la em seu auge dos anos 80.

Esta é a primeira contribuição da J.K. com o cinema. O grande triunfo da escritora em toda a sua carreira é em sua habilidade fantástica em construir universos e desenvolver personagens divertidos e até profundos. Para minha surpresa, ela conseguiu escrever um roteiro que não apenas dá como prioridade a criação de novos personagens, como também utiliza de vários elementos que clamam por uma continuidade no futuro – claro, intencionalmente. A narrativa que ela opta aqui se distancia bastante da utilizada em seu primeiro livro da saga Harry Potter (A Pedra Filosofal), pois ao invés de iniciar com a constituição das motivações e criação do possível plot, ela opta por deixá-lo se revelar conforme os novos personagens vão entrando no contexto, o que é uma decisão arriscada, pois necessita constantemente de exposições. Ao invés de iniciar introduzindo e comentando quem é nosso adorável protagonista, Newt Scamander, e explicar o que o jovem rapaz fará nos Estados Unidos, ela já inicia nos colocando no contexto que o filme passa na timeline do universo e deixa para fazer todas as apresentações necessárias conforme Newt vai conhecendo os outros protagonistas e elenco de apoio do filme.

Falando em contexto, eis outra escolha sábia: a retratação do que seria uma versão atualizada (para a época em que o filme se passa, 1926) das caças às bruxas nos Estados Unidos. Aqui, há uma versão bem hiperbólica do caso das bruxas de Salém, pois não se trata apenas de um episódio histórico de uma cidade de Massachusetts, o contexto é quase que nacional, a caça às bruxas é um assunto absolutamente sério em todo o território americano. E, claro, há várias referências históricas e diversos questionamentos éticos propostos pelo filme, como, por exemplo, debates ante à determinadas condutas contra a liberdade e mais conservadoras – algo que a J.K. sempre fez em suas obras – e às medidas radicais com pouco fundamento. O debate fica bem superficial neste filme se comparado aos anteriores, mas onde ele tem maior poder é quando discute intolerância, segregação, e, principalmente, na busca pela personalidade própria. Isso é facilmente perceptível ao mostrar o comportamento e a personalidade do personagem do Credence, que sofre nas mãos de uma mãe extremamente intolerante, deixando clara a necessidade da autora em militar contra a repreensão do diferente e seu apoio à busca por identidade própria. E o interessante é que é possível pegar todo tipo de retratação de marginalização do mundo real em seus personagens, como a polêmica que poderia gerar um casal entre um bruxo e um não-maj (como são conhecidos os Trouxas, em New York), o que já foi debatido de formas mais pesadas nos filmes e livros da saga principal, mas que ela não deixa de comentar, além de outras alegorias relacionadas ao fundamentalismo religioso que estão presentes, também, na personagem da Mary Lou (a mãe do Credence, já citada anteriormente no texto). Por mais que muitos entendam como besteira, não há como negar que a J.K. consegue criar esses personagens não apenas em sua forma, mas em sua ideia, em sua temática.

Talvez o único problema do roteiro esteja na trama principal. A história central do filme é bem simples, o que não é algo ruim, o problema é que é tão simples que praticamente todas as subtramas são mais interessantes, tanto que grande parte das questões discutidas pelo filme (citadas anteriormente) se encaixam não no plot, mas em suas ramificações. Essa falta de balanceamento fica clara no terceiro ato do filme, em que vários acontecimentos acarretam à uma determinada situação que é desde o início incitada por uma das subtramas (ah, spoilers, como eu queria poder utilizá-los). Junto à trama principal, há também certas resoluções mal explicadas que podem deixar boa parte do público desapontada – mas, que, claro, deve ter sido optado com uma visão mais ampla, para que seja desenvolvido nos próximos filmes.

A direção do filme é de David Yates, que dirigiu os quatro últimos longas da franquia original. Aqui ele utiliza do mesmo tom já visto em vários de seus filmes anteriores, como A Lenda de Tarzan e os últimas da saga Harry Potter. Ele é um diretor que segue ordens, que nunca tenta colocar uma marca diferenciada em seus filmes, além de suas palhetas acinzentadas, que, cá entre nós, não tem nada de original. Há uma tentativa de fazer um certo contraste entre este e os demais filmes de Harry Potter, a começar pela inconsistência do tom. Nos anteriores filmes, a mudança do tom acompanha o crescimento e o amadurecimento do público e dos personagens, o que aqui é completamente desvairado; ora é fúnebre, denso; ora é descontraído e irreverente. E, acredite, isso não é algo negativo no filme: funciona como uma tentativa de se destoar dos anteriores, para mostrar que esta é uma franquia nova. Talvez sua maior coragem no filme seja essa. Ele poderia muito bem tratar os filmes com uma linguagem universal, contudo, opta pelo desvio e consegue convencer. É bem provável que nas sequências o tom seja mais sombrio, mas pode ser um tiro no escuro (sim, foi um trocadilho com o “sombrio”). A tentativa de não criar um “esperanto” entre todos os filmes do universo mágico ajuda a evitar comparações até ilógicas – o que muitos gostam de fazer, e a internet potencializou. E se ele consegue criar um tom contrastante aos anteriores, seu maior problema aqui é na criação de algumas cenas. Além de utilizar de muitos planos estáticos, o que denuncia certa preguiça, ele teve certa dificuldade em resolver alguns cenários, os quais o CGI acaba virando um problema, e não bem utilizado, como durante boa parte do filme ele o faz. Em determinados pontos, há uma tentativa de criar planos um tanto quanto diferenciados, com um tom caótico na mise-en-scene, o qual o diretor deixa vários espaços “mortos” ou até com alguns objetos obstruindo o olhar. E, o que seria o mínimo para que este filme acontecesse, as criaturas são todas muito bem feitas, desde seu conceito até sua finalização. Nelas e nos feitiços os CGIs são excelentes, pecando apenas, como já dito anteriormente, quando é utilizado como cenário, pois é nítida a utilização do fundo verde e não é criada a imersão necessária para que o público consiga se sentir dentro do cenário, pois, primeiramente, suas cores destoam aos tons dos objetos não-computadorizados, e também não é criada sensação de profundidade de campo que um fundo em computação gráfica precisaria para convencer.

Aliada à direção há também uma ótima retratação de época, com figurinos e trilha sonora perfeitamente complementares ao trabalho do Yates. O primeiro, em especial, consegue passar um ar de elegância e, em alguns momentos, apesar de se passar em New York, um tom londrino aos personagens gerais – não apenas ao Newt, que é, originalmente, de Londres – e, graças a isso, sempre há uma sensação de familiaridade, mesmo o filme tentando ser tão original. E se os filmes estrelados pelo Daniel Radcliffe têm como marca a trilha sonora original extremamente colante e graciosa, embora simples e com momentos pontuais de explosões, Animais Fantásticos e Onde Habitam não fica atrás. James Newton Howard consegue compor com tons da alma de John Williams temas nostálgicos e com elementos próprios, vagando entre a fantasia, o terror – em alguns momentos –, a psicodelia e a descoberta, do prazer em desbravar.

Um dos triunfos do filme se deve à excelente composição de elenco. A começar pelo protagonista: Eddie Redmayne – o Newt Scamander –, que é um ator que muitos enchem a boca para falar mal, é o ponto máximo de atuação do filme. Ele consegue passar, apenas com seu olhar, todas as características de seu personagem. O impressionante de sua atuação é sempre em sua expressão de encantamento, de paixão pelo o que está a reagir. Talvez o ator tenha cabido tão perfeitamente para o personagem por sempre trabalhar em cima de caricaturas, o que, neste contexto, não é, de forma alguma, algo pejorativo. Este é, quiçá, o melhor trabalho do ator ganhador do Oscar de 2015. Além de Redmayne, todos os outros protagonistas são fantásticos, com destaque à belíssima Katherine Waterston como Tina Goldstein e ao cativante Dan Fogler como Jacob. A primeira é a personagem menos caricaturada do filme. Waterston representa a sobriedade presente no universo fantasioso, pois sua personagem está sempre contida, com uma postura admirável, dessemelhante ao personagem interpretado por Fogler, que é a representação não mágica dentro de universo completamente mentecapto. O mais engraçado disso é que ele basicamente entra tão de cabeça neste universo que por muitos momentos o filme faz com que o público esqueça sua incapacidade de conjurar feitiços. Tanto este personagem quanto o de Redmayne conseguem ser carismáticos diante suas caricaturadas atuações. Por fim, Alison Sudol nos entrega uma personagem absolutamente encantadora, a Queenie Goldstein. Toda a sua elegância e seus truques funcionam como elementos da trama, e não apenas como o que poderia ser, caso mal executado, uma hiperssexualização barata.

O elenco de apoio funciona de maneira pontual, dando os espaços necessários aos personagens levando sua proporção na trama em consideração, pecando apenas em não dar tanto espaço ao personagem do Ezra Miller, o Credence Barebone. É impressionante a capacidade do ator em roubar a cena, mesmo quando é apenas um secundário. Todas a nuances que o perturbado Credence transpõe são executadas de maneiras sutil, e, quando precisa, explosiva. Já a contribuição de Colin Farell é a mais conturbada, e não por culpa do ator. Como o roteiro busca uma estrutura narrativa um tanto quanto não habitual, há sempre uma certa dificuldade em desenvolver a trama e as motivações do antagonista do filme, o Percival Graves. A estrutura inusual optada esconde informações chaves relacionadas ao personagem e as suas necessidades faz com que o espectador tenha que ver até o ato final para entender o objetivo de todas as ações pelo personagem realizadas, o que, para a situação, acaba atribuindo um ar de vazio e de não-convicção do próprio personagem e do roteiro, embora Farell tenha feito um esforço admirável em sua atuação para sempre manter o tom irrefutável, extremamente persuasivo, com certa imponência e com uma soberba exalante.

Aos que enchem a boca para falar que esta é uma continuação (ou prequel) desnecessária, feita apenas para ganhar dinheiro, apresento três opções simples: a primeira – um pouco mais palpável – é tentar ter mente aberta e ver que o universo de Harry Potter sempre pediu por desenvolvimento além do literário, pois há uma vasta camada histórica que nem se quer é citada nos filmes anteriores (ou posteriores, levando em conta a linha do tempo dos filmes), sem contar que muitos dos que definem tal universo como algo juvenil, mero fetiche adolescente, mas que criticavam vários dos críticos nos anos 80 que alegavam o mesmo de Star Wars (procurem pela crítica da já extinta revista Manchete sobre o filme O Império Contra-Ataca). A segunda é um pouco menos racional e muito mais intolerante, que seria a sua total ignorância, para evitar com que você encha o saco dos fãs. Em suma, fingir que não existe. Já a terceira é um tanto quanto mais radical, e só é cabível a quem realmente se incomoda com o sucesso e com a alegria do público geral: tranque-se em um quarto e não saia pelos próximos – pelo menos – 10 anos, pois não importa o que você ache, a franquia vai continuar por um bom tempo em toda a mídia. Você não precisa gostar deste universo para respeitá-lo e reconhecer sua importância e influência no século XXI, pois conseguir despertar um sentimento de imersão e de total amor a magia em uma geração marcada pelo excesso de informação e, consequentemente, pela falta de foco, é no mínimo algo a ser respeitado. Simples.

Com uma atmosfera já conhecida, mas criando uma história com tom e narrativas originais, Animais Fantásticos e Onde Habitam consegue conquistar tanto o público de longa data quando atinge a novos alvos, pelo fato de não precisar ter acompanhado os filmes anteriores para entender o arco que o filme propõe. Mesmo com certos tropeços em sua estrutura narrativa, e uma direção pouco criativa, consegue desenvolver sua própria história e ainda sim atribuir elementos para futuros plots. Todo o carisma e o ótimo desenvolvimento dos personagens formam uma atração a parte do filme, além de criar expectativas para o que teremos pela frente. O universo de Harry Potter voltou para ficar. Transbordo felicidade.

Nota do Avaliador:

Malfeito feito!

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