Doutor Estranho – Crítica


Um filme do Doutor Estranho é um daqueles em que um estúdio já acerta só por ter coragem de fazer. Começando pela própria caracterização e por todo o universo do personagem, a Marvel – conhecida por fazer sempre o arroz com feijão e não ousar – teria um trabalho imenso em colocar um personagem tão fantasioso em seu universo tão marcado pelas ameaças espaciais, mitológicas e científicas, ou seja, de certa forma, mais palpitáveis. Inseri-lo no universo é como colocar LSD e heroína dentro da lancheira de uma criança.

Sem contar que toda a ideia e a representação histórica do personagem já é fantástica: Doutor Estranho surgiu nos quadrinhos pela primeira vez em 63, e sempre esteve em contraste aos outros personagens da Marvel por toda a sua narrativa e seus visuais extremamente psicodélicos, que conversam muito com o período de sua primeira aparição, com os movimentos psicodélicos da Inglaterra nos anos 60 – movimentos os quais levaram a LSD a tomar conta das noites londrinas – e, claro, aos Movimentos Hippies, que explodiram neste período em todo o mundo. E, claro, o filme deveria explorar bastante das psicodélicas viagens astrais, interdimensionais e todos os elementos do universo metafísico que estão no cerne de um Mago Supremo.

Portanto, o diretor Scott Derrickson – conhecido por vários trabalhos no gênero do Horror, como A Entidade, O Exorcismo de Emily Rose (talvez o seu melhor filme como diretor) e Livrai-nos do Mal – era encarregado de levar não apenas o peso de um planeta, mas de todo o multiverso nas costas – além de ser um dos roteiristas do filme. Mas, aqui, o diretor faz um trabalho quase impecável de direção, apresentando um visual de cenários absurdamente estonteantes e venustos, com um nível de detalhamento admirável e, como um bom filme do Doutor Estranho pede, com um caos visual que transcende a realidade, o qual leva os próprios personagens em cena aproveitarem da não normalidade dimensional, aproveitando de conceitos de um mundo onde as leis da gravidade não se aplicam – teorizado por Maurits C. Escher, em 1953, com sua obra “Relatividade” –, o que Nolan explorou muito bem em A Origem, de 2010, mas que Derrickson passa por cima e aumenta em várias escalas no filme do Mago Supremo, o que me lembrou, durante a sessão, o que Kubrick fez em O Iluminado (1980), pegando vários elementos do The Phantom Carriage (1921) e melhorando-os em sua própria obra. Todas as cenas de desdobramentos da realidade (como, novamente, em A Origem) são magistralmente orquestradas, especialmente no segundo ato, em que a ação é mais presente e muito frenética. Inclusive, é possível pegar vários elementos da filmografia do Christopher Nolan aqui, como, por exemplo, em cenas em que o filme usa de elementos de Amnésia e até de Batman Begins. E, claro, é quase impossível fazer um filme com uma temática tão pirada, que utiliza de tantos recursos cinematográficos ousados, tantos jogos de cores – fantásticos, por sinal –, sem ter elementos de um dos maiores gênios do cinema, Alfred Hitchcock. É claro, a vertigem é algo que o personagem utiliza a seu favor, e mesmo essa sensação sendo de méritos apenas da biologia humana, nos filmes, um dos pais da criação de cenas que causam esse tipo de sensação é o grande Hitchcock. Em Um Corpo Que Cai (de Alfred Hitchcock), foi criado o conceito de um efeito de enquadramento aliado à movimentação de câmeras chamado Vertigo Effect, que aqui Derrickson poderia ter usado muito a seu favor, mas, por algum motivo, não há cena alguma com este efeito. Quando comparações como essas são feitas, é possível concluir que o diretor fez um trabalho no mínimo admirável em seu filme. Contudo, é possível atribuir certa dificuldade por parte de Scott Derrickson na execução de algumas cenas de ação mais simples, pois o diretor opta pelos cortes rápidos durante as sequências de ação, o que quebra um pouco da imersão que o filme – especialmente este – deveria trazer. Nada, de fato, comprometedor.

Além dos já citados elementos de Batman Begins, A Origem e Amnésia, o filme tem uma estrutura narrativa muito similar à Homem de Ferro. O roteiro, escrito pelo já citado Scott Derrickson, Jon Spaihts e C. Robert Cargill traz bons elementos, mas é frágil em vários aspectos. A começar pelo excesso de exposição – com diálogos que existem para apenas mostrar ao público o que e quem é determinado personagem, por exemplo – e de explicações pífias, sendo até, por muitas vezes, redundante. Mas estes são problemas releváveis, considerando que o filme tem como objetivo contar a origem do personagem, o que pede muito por esse tipo de exposição. Se a direção e o roteiro conseguem fazer o filme ter um ótimo peso dramático – sem ser exagerado, nem contido –, há certa contradição, pois o filme apresenta várias (várias mesmo) piadas extremamente forçadas e, assim como em Vingadores: A Era de Ultron, fora de hora. O filme tenta compensar seu peso dramático com piadinhas típicas de comédias pastelão – e não me refiro das boas. Talvez esse seja o principal problema que o filme apresenta, que evidencia, mais uma vez, que a Marvel entende seu público como pessoas deixam alguns problemas do filme de lado com a desculpa de que o filme não se leva a sério por ter tiradinhas que parecem sair de alguma página muito ruim de meme no Facebook. Tirando estes elementos que a Marvel cola insistentemente em seus filmes, Doutor Estranho consegue ser um filme com bastante marca do diretor, o que sempre é bom, principalmente levando em conta que o público já está se cansando da fórmula de sucesso do estúdio. O roteiro consegue abordar vários elementos importantes do universo mistico, como o Olho de Agamotto, algumas dimensões específicas, além de dar um gancho maravilhoso para o futuro.

Um outro grande destaque é a atuação de Benedict Cumberbach. Além de conseguir transmitir perfeitamente os trejeitos de Stephen Strange, o ator também consegue construir em sua atuação todo o peso e o drama que seu personagem passa durante o filme, fazendo com que sempre haja, durante o filme, discussões sobre o tempo, sobre a sensação de impotência e como o homem pode se perder em sua jornada por poder. É claro, não chega a ser um estudo de personagem em busca da perfeição – e, consequentemente, poder – como feito em filmes como Cisne Negro, Whiplash e afins; Ou tão existenciais e reflexivos quanto à mentalidade humana como Taxi Driver ou O Espelho (de Tarkovsky), por exemplo – e nem tem a intenção de ser. Ele não tenta levar os filmes de super heróis à outro patamar, o que, por um lado, é bom por não tentar ser maior do que realmente é, e ruim por reforçar aos mais conservadores cinéfilos que esse tipo de filme não é mais que um blockbuster. Não existe problema algum em um filme querer ser simples, mas se há um personagem que poderia colocar várias dessas discussões em boa parte de sua narrativa em seu próprio filme (da Marvel), é o Doutor Estranho. Não entenda mal, jamais disse que o filme deveria ter o mesmo alto nível aos citados neste parágrafo, ambos foram utilizados apenas como parâmetro.

Todo elenco de apoio também tem boa presença, com destaque para a Tilda Swinton, nos entregando uma Anciã convincente, passando um ar de experiência e, principalmente, sabedoria. Tanto a personagem Christine Palmer, vivida por Rachel McAdams, quanto o Mordo, vivido por Chiwetel Ejiofor, são pouco explorados e, especialmente a primeira, estão apenas para reagir aos atos do filme. Os personagens que fica no meio termo é o Wong, vivido por seu xará Benedict Wong, e o Kaecilius, interpretado por Mads Mikkelsen, que fazem bons personagens dentro do filme, mas que são diminuídos e fragilizados pelo roteiro. O primeiro, por exemplo, é utilizado, em sua maioria, como um mecanismo de alívio cômico, por viver isolado e não entender algumas convenções sociais. Já o segundo não consegue ganhar peso dramático ou de imponência, sendo, ainda, diminuído com a aparição de outro personagem (que obviamente não citarei para evitar spoilers).

Claro que como fã de quadrinhos eu tive minhas dúvidas durante a sessão. Com a introdução da Christine Palmer, seria possível um crossover dela com a Claire Temple, das séries da Netflix? Para uma adaptação do arco da Enfermeiras da Noite dentro de algum filme/série só faltaria a introdução da Linda Carter (A original Enfermeira Noturna e protagonista do arco nos quadrinhos), que já existem boatos (desde 2015) de que aparecerá nos próximos filmes da Marvel. Claro, nos quadrinhos a Claire não é uma das enfermeiras do arco específico, mas adaptações são necessárias, correto?

Se no meu texto de Guerra Civil eu reclamei que as trilha sonoras dos filmes da Marvel são reles e extremamente esquecíveis, Michael Giacchino veio para me calar: aqui a trilha sonora consegue acompanhar a grandiosidade das cenas, sendo gritante em momentos explosivos, e sensível aos momentos mais dramáticos que a trama pede. É realmente reconfortante saber que ele voltará a compor trilha para a Marvel em Homem Aranha: De Volta Ao Lar. Um gênio como ele não pode ser desperdiçado, como o que a DC fez com Hans Zimmer.

Doutor Estranho é um filme que toca em temas como a morte, existência, tempo e poder. Infelizmente o filme apenas tangencia estes assuntos, sem se aprofundar em absolutamente nada por estar preso nos vícios da Marvel. Com visuais absolutamente veneráveis, direção segura e inspirada, porém com um roteiro vago e inconstante, este é um dos melhores filmes da Marvel Studios, um dos melhores filmes baseados em histórias em quadrinho do ano, e, quiçá, o melhor do estúdio em 2016. Funciona tanto no subgênero de super-heróis como um filme a parte de magia, com uma grande e forte dose de LSD e todos os tipos de drogas químicas possíveis. Apesar de tudo, deve gerar certa discussão por parte de boa parte do público, pois aqui vemos – explicitamente – que o estúdio está acomodado em seu método e não deve mudar tão já. Por mais que a concorrência tenha falhado, um estúdio na posição que a Marvel/Disney se encontra, qualquer erro pode ser fatal, pois todo mercado vive de bons plot twists. O cinema não é exceção.

Dica: Veja na melhor sala de cinema que puder.

Nota do Avaliador:

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